O caminho de santiago tem muitas características, e todas as pessoas individualmente, o definem numa e em outra direção, muito embora as apreciações sejam sempre na ordem daquilo que nos impacta, e nos mostre sensações, gostos. estímulos, experiências, impressões. Isso é rotineiro, e a cada quilômetro que se percorre, os sentimentos variam e nos impelem em diversas direções. O encaminhamento para o fim do percurso, nos remete também a uma introspecção que nos faz igualmente reagir diferente. Cada um tem a sua reação.
Eu digo tudo isso preliminarmente, para poder explicar o manancial de sensações que eu e a Simone fomos acometidos nesta etapa da caminhada, e que quero poder com calma descrever para dividir com todos vocês que lerem esta etapa, de um longo caminho. Vigéssimo quarto dia, saudade de casa, dos amigos, dos filhos, momentos de algum tédio, momentos de ansiedade, para percorrer uma etapa de 25.5 quilômetros que se apresentariam como extremamente duros e portadores de muitas sensações diversas. Saímos muito cedo de Rabanal del Camino, e a temperatura, nos ajudou bastante, pois difícil um sol direto, com áreas tão altas, e em que a cerração tende a prevalecer. os primeiros 6 quilômetros foram de uma subida pesada e quase cruel, pois a visão de onde estávamos no pé da montanha, com a perspectiva do mapa que olhavá-mos, com a passagem tão esperada pela cidade fantasma de Foncebadon, e chegar até a tão sonhada cruz de ferro, já dominava nossos pensamentos e nossas forças, independente daquilo que ainda nos esperaria logo em seguida. Como no caminho não adianta parar e fitar a montanha, a única forma objetiva de avançar é ir em frente, como sempre na vida, e isso nós fizemos com o primeiro gás, com a energia pura da manhã e com o respectivo suador que logo chegou. Passamos por diversos peregrinos, e os mais experientes ingleses, magros, acostumados com a neve, com trilhas acusavam a subida e literalmente pegavam longos momentos de trégua, para recuperar o fôlego e poder seguir em frente. Alguém pode dizer, que eram somente 6 Km, e eram de verdade, mas apenas que : que tipo de 6 km. Minha nossa senhora, que experiência bem vivida e bem sofrida.
A sensação perdurava, o tempo passava, e a tão esperada cruz de ferro nunca chegava, até que após cruzar uma cerca de arame, e de chegar a um patamar determinado, abriu-se a visão acima e lá estava ela imponente nos aguardando. Que momento ! Indescritível, até porque quando lembro, me emociono, e agora mesmo ao escrever isso , relembrando a visão, as impressões e o sentimento , as lagrimas escorrem de verdade. A cruz de ferro, é uma pequena cruz de ferro, colocada no topo de um grande mastro, que nos da a dimensão do lugar, a sua imponência e o significado para todos os peregrinos que ate ali chegam e fazem a sua interação de fé e de crença.
A vontade de descrever a cruz de ferro, me fez esquecer a subida e passagem pela tão falada e decantada, cidade fantasma que se chama Foncebadon. Um lugar muito bem localizado na subida da montanha, mas que por suas características de ruínas e de cidade abandonada, criou no caminho o folclore de lugar mal assombrado, que os cachorros eram gigantes, e que de meio as casas, com a cerração, os peregrinos eram assustados e tinham visões nada agradáveis. realmente a visão é de abandono, destruição, lugar assombrado e abandonado, fazendo com que cada um reaja de forma diferente, e também conforme a hora que se cruze este lugar, ele seria sim próprio para alguns sustos bem pertinentes. Mas, para testemunho próprio, entendo que tivemos uma passagem tranquila na primeira hora da manhã, e que , afora a sensação de abandono, que nos dá um desconforto, nada de maior nos acometeu, nesta tão retratada e comentada passagem, em todos os relatos e livro que podemos ler sobre o caminho de santiago. Atualmente, pelo que podemos ver na passagem rápida, esta havendo uma retomada lenta e gradual de alguns locais de parada ali nesta cidade " fantasma", sendo que isso deverá ser com certeza a redenção do povoado, até então e por muitos anos abandonado. A foto recolhida dos registros de outros peregrinos bem ilustra tudo o que escrevi sobre o lugar. A visão não é nada alentadora, e a atmosfera tétrica de lugar mal assombrado existe sim sob as diversas formas de se ver e sentir esta etapa do caminho.
Voltando a CRUZ DE FERRO, a primeira coisa que fiz quando cheguei foi descarregar a mochila no parador que tem nas proximidades e ir ver de perto aquela montanha de pedras, carregada de forma individual e unitária por cada um, formando ao longo dos anos esta montanha que a foto retrata. todos os peregrinos trazem de seus locais de origem uma pedra, e com este significado, a colocam no pé da cruz, fazendo seus pedidos e suas orações.A emoção de todos que chegavam era presente, e as lagrimas também uma quase unanimidade. A magia, significado, a coisa forte que daquele monte de pedra com aquela cruz, exerce sobre todas as pessoas é muito forte de verdade. estivemos por longos momentos sentados, descansando, sem pressa, fitando todos que chegavam e fotografando os momentos de fé e de manifestações as mais diversas. Depois de descansarmos, foi a nossa vez de abrir as mochilas , retirar nossas lembranças, e as lembranças dos amigos que nos fizeram portadores de seus pedidos, de suas crenças, de sua fé e da magia que a todos envolvia. Tive a oportunidade de levar algumas coisas de minha mãe, de amigos,minhas pessoais, que pude com calma fixar ao redor do mastro, amarando, colocando entre as pedras e por alguns momentos ficando quieto e calado com meus pensamentos, naquele ato de fé, simbólico sob qualquer que seja os acreditar e entender ! QUE MOMENTO DE MINHA VIDA!!! Quem um dia tiver esta oportunidade verá do que falo, da sua imponência e do seu significado. Muito forte de verdade.
Pois é, a vida é sempre assim. Alterna momentos vários , com sensações várias e nos faz refletir sobre todas as situações que estamos inseridos. A passagem da cruz de ferro foi muito intensa, muito emblemática e fez a mim em especial, ter a sensação de ter deixado por lá , uma série de fatos, de sentimentos, de dores, que só quem passa, convive e está que pode mensurar. Pois bem meus amigos, mas a coisa estava sómente nos primeiros 6 km, e o dia estava apenas começando.
Acredito que devemos ter ficado, algo em torno de uma hora , uma hora e meia nesta parada, que com todo o seu significado, nos faz reagir das formas mais variadas. Eu fiquei, ato contínuo a parada, com um misto de euforia, de leveza, de tranquilidade, que me fez calar e convidar a Simone para irmos em frente. Prontamente nos organizamos com as coisas guardadas, tudo fechado, cajado, luva, roupas afiveladas, e eu ousei dizer assim para a Simone: agora será 20 km de barbada, pois é só descer, conforme vocês podem ver no mapa que informa a declividade da etapa. QUE TRISTE FALA E QUE ILUSTRE ENGANO MEUS AMIGOS !
Pois foram alguns minutos de asfalto de descida, com calçada e sinalização, e algo novo se apresentou para nós nesta surpresa do dia: PEDRAS NOS CAMINHO ! TODAS AS PEDRAS DO MUNDO ESTAVAM NAQUELE CAMINHO , na descida de 20 km até a cidade de Molinaseca.
Foram sete horas de caminhada entre morros de pedra , sómente descendo, mas com todo o tipo de dificuldade possível e com os nossos joelhos voltando a acusar as dores, a ficar doloridos, com o perigo de tropeçarmos, e nos cortarmos feio, pois qualquer tombo seria um estrago. Morros imensos de pedra, pedras soltas de todos os tamanhos, de todos os tipos, de todas as cores, indo da ardosia quebrada e afiada, até o seicho de rio nas baixadas e nas corredeiras das águas que das montanhas desciam por todas as fendas possíveis. Quem gosta de filme de guerra, quem conhece o trabalho dos soldados americanos " RANGERS", aquele trecho era algo digno para a brigada americana de selva, tendo em vista todos os percalços e adversidades. A descida era toda escarpada, com lugares até perigosos, com imersão total na mata, com passagem por locais pouco habitados, e também a passagem por povoados minúsculos, que nada nos permitiriam se realmente houvesse a necessidade de um socorro mais efetivo e rápido. Um trecho difícil, para se esquecer e fazer sofrer. Para quem pensou como eu que seria aquela máxima de que para baixo todo o santo ajuda, nos enganamos redondamente.
Detalhe importante: neste trecho, a Simone teve as únicas bolhas da caminhada, e teve que fazer a descida, não calçada de botas , mas com um par de" Papetes ", sendo que também assim foi admirável a sua garra em fazer um trecho tão difícil, com bolhas e depois calçada com um material que não era adequado ao tipo de terrenos que estávamos descendo. A paisagem, em discordância ao nível de dificuldades, era deslumbrante, proporcionando uma visão panorâmica, muito linda, onde destacavam-se os pico muito nevados ainda e os morros crivados de aerogeradores eólicos.
Quando chegamos finalmente, ou quando divisamos lá no fundo do vale a pequena cidade de Molinaseca, tivemos um alento, pois somente a temperatura agradável e o sol que esquentava nas primeiras horas da tarde, para nos dar o alento que estávamos precisando. Ficamos em um albergue bem bom, particular, que nos proporcionou mais algumas hora de conforto, com a possibilidade daquele sempre esperado banho, momento de lavar as roupas e comer alguma coisa mais forte e que nos desse mais fortidão para a etapa seguinte. Além disso, os detalhes corriqueiros de ver onde era a farmácia, compra de mais Micropore, mais alguns comprimidos de ibuprofeno, um pequeno passeio pelo centro antigo do povoado, que tinha a sua area medieval preservada, antiga, mesclada com a modernidade de uma cidade atualizada, com excelente padrão de vida, que nos mostravam os prédios, carros e pessoas que podemos ver e avaliar.